Origem
O Carnaval de Veneza é muito mais antigo do que se pensa. A festa foi instituída em 1094 (mesmo ano da consagração da Basílica de São Marcos) pelo doge Vitale Falier. Proveniente de uma das famílias mais potentes da cidade, Falier propôs que antes do início da quaresma, a população tivesse direito a usufruir de um período de jogos, brincadeiras e diversão pública. Não era uma novidade. Os romanos no passado já realizam este tipo de festa, nos chamados dias Saturnali, quando festejavam o deus Saturno, com banquetes, sacrifícios e subversão dos papéis: os escravos tomavam o lugar dos patrões por um período.
Mas foi em 1296, que o Senado veneziano formalizou o carnaval com um decreto que declarava que o último dia antes da quaresma fosse festa. A população, porém, já começava a comemorar o carnaval meses antes, em dezembro. A oficialização do evento trouxe consigo uma série de usos, costumes, além de caracterizá-lo como um verdadeiro business. Nesta época já existiam, por exemplo, as escolas ou confrarias dos “mascareri”, ou seja, os artesãos que produziam as máscaras e fantasias para os foliões.
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As máscaras e a sociedade
A euforia do carnaval estava no papel social que ele incorporava: um momento de abandono da própria identidade. O anonimato permitia aos venezianos de serem quem eles queriam ser pelo menos durante um período do ano. Os homens usavam a “baùta”, uma roupa com uma espécie de capa que cobria todo o corpo. O rosto era escondido por uma máscara branca triangular, com uma abertura que não os impedia de comer e beber, mas era suficientemente fechada para alterar até mesmo a voz de quem a usava.
As mulheres usavam a “moretta” uma máscara preta de veludo oval. Porém, para elas reinava o silêncio, já que a moretta era encaixada no rosto por meio de um botão que devia ficar dentro da boca da mulher, o que as impedia de se expressarem.
A liberdade muitas vezes era exacerbada: atos imorais, golpes, pequenas ações criminais aconteciam, mas eram controlados pelas autoridades. As máscaras chegaram a ser proibidas em um período durante a noite, nos lugares sagrados e nas casas de jogo. Nos teatros, porém, eram obrigatórias.
Os jogos e brincadeiras
A ordem era diversão e os venezianos, considerados naturalmente sérios e contidos, aproveitavam o período do carnaval para liberar-se. Alguns jogos eram organizados pela “Compagnia della Calza”, uma espécie de associação que promovia pirâmides humanas, corridas, competições entre acrobatas e incentivavam a presença de saltimbancos, músicos, mímicos e artistas de toda espécie pelas ruas.
Algumas manifestações eram cruéis, como a caça ao touro, que acontecia geralmente no Campo San Geremia e Campo San Polo, onde o animal era decapitado para exaltar a maestria dos açougueiros, uma figura importante do comércio da Serenissima.
Entre as brincadeiras, estava também o temido “mattaccino”, que com um estilingue jogava ovos nas damas venezianas. Por sorte, os ovos eram esvaziados e preenchidos com água de rosa. Os desafios entre os moradores de bairros diferentes também alteravam os ânimos. O mais famoso era “La Sfida dei pugni”, ou seja, o desafio dos socos, que acontecia na Ponte dei Pugni (ponte dos socos). Os dois grupos combatiam para jogar na água os adversários com socos em um violentíssimo espetáculo. Vale lembrar que as pontes naquela época não tinham parapeito.
Personagens importantes: Casanova e Goldoni
Os anos de 1700 foram os anos de ouro do carnaval veneziano. Naquele período viveram na cidade o escritor de comédias Carlo Goldoni e o famoso Giacomo Casanova, escritor, poeta, e misterioso aventureiro. Os palácios nobres eram o local onde aconteciam os luxuosos bailes. Em seus jardins, os mascarados se escondiam em um jogo de sedução com as damas. Ninguém sabia com quem estava interagindo, eram todos cobertos por máscaras.
A chegada de Napoleão e o fim do carnaval
A queda da República de Veneza, com a chegada de Napoleão, em 1797, marcou não só o fim do poder da Serenissima, mas transformou profundamente a cidade. Com medo do anonimato e da liberdade do carnaval, Napoleão decretou seu fim, permitindo somente as festas em casas privadas e nas ilhas de Murano, Burano e Torcello.
É estranho pensar que Veneza foi privada de sua festa tradicional por tantos anos, mas foi somente em 1979, quase dois séculos depois, que o carnaval voltou. Um grupo de cidadãos, por meio de associações ressuscitou o carnaval, saindo nas ruas com fantasias, jogos, máscaras. As autoridades públicas passaram dar atenção à volta do carnaval e a investir no incentivo de manifestações e festas. Os artesãos voltaram a produzir os luxuosos vestidos e fantasias da época de ouro e as pessoas invadiram novamente a Praça São Marcos, campos e calles de Veneza.
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O Carnaval hoje
Hoje o Carnaval de Veneza atrai foliões do mundo inteiro, curiosos em participar da festa como protagonistas ou somente observadores. A cada ano é escolhido um tema e nos últimos anos, tendencialmente os ofícios e o artesanato têm sido contemplados, como uma valorização do passado. Principalmente durante os finais de semana, a Praça São Marcos fica lotada de pessoas vestidas a caráter que alugam ou confeccionam suas próprias fantasias.
É curioso ver a dedicação e a riqueza de detalhes nos trajes das damas, mas também dos homens que capricham no visual, na maquiagem e nas perucas. Não existe muita música, blocos, desfiles ou nada que relembre o carnaval do Brasil. As pessoas sim, vão ali para verem, serem vistas e se divertir. Muitas delas se sentam nas mesas do café histórico, fato que presenteia o vistante com uma viagem no tempo.
Alguns eventos e tradições são fixos, como o cortejo das Marias, o voo do Anjo e os concursos da fantasia mais bonita. Para conhecer a programação do carnaval e os eventos fixos de cada ano, clique aqui.
Participar do Carnaval de Veneza é uma emoção única. Vale a pena enfrentar o frio do inverno e a multidão pra ver de perto uma tradição secular, que encanta o mundo inteiro ainda hoje.