A Nápoles de Elena Ferrante, um passeio inspirado na Amiga Genial
Ia a Nápoles frequentemente quando cheguei na Itália, em 2004. Nos afastamos por um período e algumas lembranças da cidade ficaram na minha memória. O Vesúvio, a funicolare, os mercados, a Galeria Umberto I e a pizza frita. Até que em 2016, vislumbrou-se uma nova Nápoles para mim: o Rione, a Piazza dei Martiri, o Rettifilo. Aquela cidade que havia visto anos atrás ia se delineando na minha cabeça por meio de uma história tão bem contada a ponto de tornar-se uma obsessão. A Nápoles de Elena Ferrante, autora da Amiga Genial, me pegou, junto com a tal #ferrantefever. Não tive como não voltar na cidade e registrar tudo o que vi com outros olhos.
A Amiga Genial
Não conhecemos a identidade de Elena Ferrante. A escritora teve seu primeiro livro lançado na Itália em 1991 e, desde então, preferiu o anonimato. Não foi só o mistério que ronda em torno ao seu nome a torná-la um personagem fascinante. A narrativa sólida e sensível conquistou o mundo inteiro a partir do lançamento do primeiro volume da Amiga Genial. A tetralogia conta a história de vida de duas amigas, da infância à velhice, cerca de 60 anos emoldurados pelas ruas de uma Nápoles ora miserável, ora elegante.
Eu conheci Elena Ferrante em 2016. Estava grávida da minha filha Olivia, depois de episódios difíceis de tentativas e perdas. Os livros da Ferrante me fizeram companhia durante boa parte da minha gravidez, principalmente no início, quando uma insegurança à la Lenù tomava conta de mim. A me apresentar Ferrante foi a minha amiga genial Nicole, que cerca de 1 mês depois, também descobriu que estava grávida. Assim, Lila e Lenù, as personagens do livro, fizeram companhia à mim e à minha amiga, enquanto esperávamos as nossas bebês.
Enfim, à parte minha experiência pessoal, a tetralogia da Amiga Genial tornou-se uma febre no mundo inteiro. A narrativa conquistou mais de 5 milhões de leitores e aguçou a curiosidade sobre Nápoles, criando um novo turismo temático na cidade.
O roteiro de Elena Ferrante
Lila e Lenù passam a infância e uma parte da juventude em um bairro muito pobre da periferia de Nápoles. Sair do Rione em direção à cidade foi não só uma emoção, mas um marco da vida de Lenù. É quando ela está para começar o liceu no centro da cidade, que o pai, porteiro de um edifício público, a leva para aprender o caminho.
Piazza Garibaldi é uma das portas de entrada da cidade e onde fica a estação de trens de Nápoles. Dali é possível pegar o metrô, ônibus ou táxi para se deslocar para os outros pontos. Ou a linha Circumvesuviana, que passa pelo Golfo de Nápoles.
Via Toledo e Bairro Espanhol
Nós escolhemos a Via Toledo para nos hospedar. A estação de metrô de Via Toledo é uma das mais bonitas da Europa e o título acabou lhe rendendo caráter de atração turística. Subir pelas escadas rolantes nos dá a impressão de mergulhar na “galleria del mare”, projetada pelo arquiteto catalão Oscar Tusquetes e colaboração de diversos artistas.
A Via Toledo é uma rua de pedestres repleta de lojas, bares, cafés, edifícios públicos, palácios históricos e algumas lanchonetes que vendem os “cuoppi”. São cones de papel com as famosas frituras napoletanas de terra e de mar: calamari, baccalà, zeppole, arancini, calzone. Nós experimentamos o cuoppo da Passione di Sofì . A Via Toledo foi construída no século XVI pelo vice-rei espanhol Don Pedro de Toledo. Era aqui que os irmãos Solara, Marcello e Michele desfilavam com a Fiat 1100 e importunavam as meninas.
A oeste da Via Toledo, estão os famosos becos do “quartieri spagnoli”, o bairro espanhol (na foto acima). Originalmente este pedaço da cidade foi construído para hospedar as tropas de Don Pedro. Hoje é um dos pontos mais característicos do centro, com uma grande concentração de lojas que vendem de tudo um pouco, tratorias e restaurantes onde experimentar a típica cozinha napoletana. Indico a Trattoria Antica Capri, na Via Speranzella, onde comi a melhor pizza da viagem.
Galleria e Maschio Angioino
Descendo a Via Toledo em direção ao mar, à esquerda está a majestosa Galleria Umberto I. Construída em apenas 3 anos, entre 1887 e 1890, é um dos símbolos da cidade. Quem já esteve em Milão consegue notar a semelhança com a Galleria Vittorio Emanuele não só na forma, como também nos detalhes. Um olhar atento reconhece os signos do zodíaco, as estações do ano e os continentes. Na entrada da galleria pela Via Toledo, não deixe de experimentar os doces da Mary, que faz as melhores sfogliatelle da cidade. Particularmente eu gosto do babà e da pastiera, não deixe de experimentar.
O passeio que Lenù faz com o pai à descoberta de uma Nápoles com a qual ela não tinha a menor proximidade é coroado com um discurso cheio de ternura de seu pai quando chegam ao Maschio Angioino. “… dois homens de verdade existem em Napóles, um é o seu pai e o outro é este aí…” O castelo foi edificado a pedido de Carlo d’Angiò I, no século XIII e sofreu enormes modificações ao longo dos séculos, alterando seu estilo arquitetônico, o que não fez porém com que perdesse sua beleza e importância histórica.
Piazza Plebiscito, Chiaia e Piazza dei Martiri
Parada estratégica no Gran Caffè Gambrinus, um dos mais tradicionais da cidade com seus salões em estilo liberty. Aqui acontece o encontro de Lenù e Lila com Pinuccia, já em idade adulta. No Caffè Gambrinus surgiu o hábito do “caffè sospeso”, que consiste em deixar um café pago para os mais humildes.
No final de Via Toledo está a monumental Piazza del Plebiscito, um verdadeiro ícone de Nápoles. De um lado, a Basílica de São Francisco de Paula, construção iniciada em 1817 e inspirada ao Panteão de Roma. Do outro, o Palácio Real, erguido em 1600, com sua fachada clássica com oito estátuas de soberanos napoletanos.
No final de Via Toledo, viramos à direita em Via Chiaia, uma rua elegante e exclusiva para pedestres, muito agradável para um passeio. Este é o cenário da noite em que Lila e Lenù saem com os amigos do Rione e que termina em pancadaria e marca uma das tantas passagens comoventes do livro: “Foi como ultrapassar uma fronteira. Me lembro de muita gente e uma sorta de humilhante diversidade. Não olhava os rapazes, mas as moças, as senhoras: eram absolutamente diferentes de nós. Pareciam respirar outro ar, comerem outra comida, vestidas em um outro planeta, e aprendido a caminhar num fio de vento”.
A elegante Piazza dei Martiri, endereço escolhido pelos irmãos Solara para a loja de calçados dos Cerullo, tem mesmo a atmosfera descrita no livro. As vitrines de Giorgio Armani e Salvatore Ferragamo me fizeram lembrar de muitos episódios vividos por Lila neste pedaço elegante de Nápoles.
Seguindo a praça, rapidamente chegamos no famoso Lungomare Caracciolo, de onde Lenù admirava o Vesúvio. Vendo duas amigas napoletanas passeando, me diverti imaginando Lina e Lenù modernas posando para as lentes de seus celulares. O Lungomare Caracciolo oferece um panorama lindo da cidade e um passeio agradável, passando pelo Castel dell’Ovo.
Centro histórico antigo
No centro histórico antigo está o coração de Nápoles. O que a gente vê nos filmes, na TV, que está no nosso imaginário. A começar pela Piazza del Gesù Nuovo, cenário de Matrimonio alla italiana, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni. Visitamos a Chiesa del Gesù Novo, com sua fachada inusual, herdada de um palácio histórico (San Severino) que existia no lugar da igreja. O interior é suntuoso com altares e esculturas em estilo barroco.
Uma grande supresa de Nápoles fica logo ali, o Complexo Monumental de Santa Chiara. A imponente igreja gótica, reestruturada em época barroca e completamente destruída durante a Segunda Guerra Mundial, foi reconstruída de acordo com o estilo original. Mas o que encanta e atrai visitantes do mundo inteiro é o claustro do monastério que tem suas pilastras e bancos decorados com a maiolica, um tipo de trabalho em cerâmica.
Ainda no centro histórico antigo, vale a pena entrar na Cappella San Severo, para admirar o Cristo Velato, uma extraordinária escultura em mámore, de Giuseppe Sanmartino que representa Jesus Cristo coberto com um véu. A escultura é tão real que dá até vontade de tocá-la. Outro ponto alto são as botegas com os famosos presépios artesanais napoletanos, que ficam na via San Gregorio Armeno. É impressionante a riqueza de detalhes nas estátuas e a quantidade de souvenir para quem gosta de levar uma lembrança pra casa.
Quando ia ao centro, Lenù passava sempre pela Via Dei Tribunali. Lá paramos com minha prima napoletana para comer uma pizza na Pizzeria Di Matteo. É uma das pizzarias mais famosas de Nápoles. A experiência é completa quando entram os músicos de rua cantando as músicas tradicionais napoletanas.
Aproveitamos para dar um pulo no Duomo de Napoli, onde estão as famosas ampolas de sangue de San Gennaro, que de tempos e tempos torna-se líquido, o que significa tempos de prosperidade.
A última etapa do centro histórico antigo é via Port’ Alba, uma rua estreira repleta de livrarias e sebos onde Lenù folheava seus tão amados livros e se esforçava para se tornar uma mulher inteligente e superar sua amiga genial.
Vomero, parte alta da cidade
De volta a Via Toledo, passando pela Piazza Dante, está a funicolare centrale, que liga e centro da cidade aos bairros altos. Dali pegamos a funicolar que nos levou ao Vomero (descemos em Piazza Fuga), o bairro elegante onde Lenù começa a frequentar os debates intelectuais da burguesia, na casa da professora Galiani, onde reencontra Nino Sarratore. No Vomero visitamos o Castel Sant’ Elmo, de onde tivemos uma vista espetacular de toda Nápoles e do Vesúvio, fechando com chave de ouro nosso passeio em Nápoles pelos lugares do livro de Elena Ferrante.
O bairro de Lila e Lenù
O universo de toda a tetralogia gira em torno do “Rione”, o bairro onde Lina e Lenuccia nascem e crescem, e onde são construídos os personagens do livro. A relevância deste ambiente é enorme, já que Lenù luta (de certa forma inutilmente) para sair dele, enquanto Lila resolve ficar. O bairro do livro é o Rione Luzzatti, que fica na periferia leste da cidade, uma área completamente fora das atrações turísticas e das belezas do centro histórico de Nápoles, mas que sintetiza as ambivalências da cidade e da saga das duas amigas.
Chegar ao Rione Luzzatti com transporte público não é simples. E para qualquer napolitano que se pergunta sobre o bairro, a resposta é sempre a mesma: mas o que você vai fazer naquele lugar feio e perigoso em plena periferia? Até mesmos taxistas se surpreendem com o interesse pelo local, que passou a ser visitado pelos turistas depois do sucesso da tetralogia. É verdade, o Rione Luzzatti não é um lugar bonito, mas para os entusiastas da obra, é uma etapa emocionante da viagem em busca dos lugares da tetralogia. Eu me emocionei muito e não pude conter as lágrimas percebendo a brusca mudança do ambiente no trajeto entre o centro histórico e o Rione Luzzatti. Me emocionei muito, aos olhos incrédulos do taxista, visitando os lugares que até então estavam só na minha imaginação.
É possível reconhecer a biblioteca frequentada pelas meninas na infância, a Biblioteca Popolare Rione Luzzatti, hoje decorada com um mural onde se vê a imagem dos atores que na série vivem a professora Oliviero e o professor Ferraro. Ele está sentado segurando o retrato do professor Agostino Collina, que idealizou a biblioteca nos anos 50. A arte é de Eduardo Castaldo, fotógrafo de cena da série. A biblioteca fica na Via Beato Leonardo Murialdo.
Na Via Marino Freccia fica a Scuola Elementare Quattro Giornate, a escola fundamental frequentada por Lila, Lenuccia e as crianças do bairro. Na mesma rua está a Paróquia da Sagrada Família, onde acontece o casamento entre Lila e Stefano Carracci.
Reconheci também o estradão (stradone), o túnel que elas pegam quando fogem da escola para ver o mar, e o bairro novo, com a linha de trem ao fundo. O Rione Luzzatti em si é um bairro normal de periferia, com prédios um pouco mais feiosos, simples, mas nada que justifique o estupor dos taxistas e napolitanos de quando a gente diz que quer conhecê-lo. O entorno sim é bem degradado e os moradores se lamentam do descaso, apesar dos esforços dos artistas de rua em transformar o local com os painéis dedicados à Amiga Genial.
Uma das obras de requalificação é o enorme painel do artista venezuelano Gomez que retrata duas meninas abraçadas evocando Lila e Lenuccia a partir de uma reinterpretação do quadro A Tempestade, do realista francês William Adolphe Bouguereau. O mural fica próximo à Piazza Lo Bianco.
Onde ficar
Depois de procurar bastante, resolvemos seguir os conselhos da minha prima e ficamos hospedados na Via Toledo. Melhor escolha. É um lugar central, uma rua de pedestres plana(ótimo para carrinho de bebê), lojas, serviços, metrô e transporte. O hotel escolhido foi o três estrelas Hotel Principe Napolit’Amo. Fica em um palácio e nosso quarto era muito grande com pé direito alto e janelões com vista para a rua principal. Café da manhã normal com doces e tortas feitos em casa. Quarto limpo, muito confortável.
A única observação é que o hotel fica no primeiro andar e o elevador é o típico equipamento dos palácios antigos napolitanos, minúsculos e funcionam com uma moedinha de 10 centavos. Não pelos 10 centavos, mas pelas dimensões foi bem problemático para o combo mala, bebê e carrinho de bebê. Mas a experiência foi ótima e a equipe muito gentil e querida.
Adorei o post!!
Fantástico ver Napoli com o seu olhar e após ler Elena Ferrante.
Diferente da cidade que conheci em 2006.
❤️
Carol,
Que bom. Obrigada! Também tive a sensação de conhecer outra Nápoles. Nada como um livro que nos faz viajar e emocionar,né?
Um abraço,
isa
Oi Isa te acompanho e gosto muito da maneira como colocas os assuntos .
Esses livros da Elena Ferrante temos em português? Fiquei curiosa…..apaixonada pela Itália….
bjs
Oi,Ana,
Obrigada. Fico contente que acompanhe e goste. Sim, você encontra os livros dela em português. Ela é um sucesso no mundo inteiro.
Um beijo,
isa
Boa tarde! Gosto muito do seu blog! Mas justamente por suas belas descrições estou muito em dúvida se opto por napoles ou se faço verona, padova e lago di garda em meados de outubro. O que vc aconselha considerando o clima? Terei apenas 4 dias. abs e muito obrigada!
Olá,Domênica,
Nápoles fica no sul, muito longe de Padova, Verona e Lago de Garda.
Você teria de escolher entre o sul ou o norte da Itália. Se for para Napoles, aproveite para conhecer Roma.
Se optar pelo norte, pode conhecer Padova, Veneza e Verona.
Um abraço,
isa
Oi Isa! Sempre que posso te acompanho nos Stories. Adoro seu olhar, seu blog. Estou terminando o ‘Amiga Genial’ louca para ler os próximos. Eu queria ler em italiano (estou estudando), acredito que as diferenças que Elena diz sobre os dialetos sejam mais interessantes, mas estou me deliciando mesmo em português. Estive em Nápoles este ano, coincidentemente quando você estava mas não conseguimos nos encontrar. Eu deveria ter lido o livro antes de conhecer um pouco de Nápoles, mas seus comentários aqui e o pouco que conheci me fazem viajar, imaginar tudo como Elena descreve. Um beijo da seguidora Minelli Lupeti ?
Minha querida!
Sim, o universo da Elena Ferrante faz mesmo a gente viajar. Não vejo a hora que a série esteja disponível pra gente ver. Não é uma leitura fácil em italiano, o livro não é escrito em dialeto, mas existem palavras e contextos mais complicados de entender. A série será em dialeto e até aqui precisaremos das legendas. Obrigada pela mensagem.
Bjo
isa
Oi Isa! Olha eu li ‘Amiga Genial’ em setembro e agora nas férias de verão do Brasil terminei o ‘História do novo sobrenome’ , que autora genial, escrever com tanta sensibilidade. Quero voltar a Nápoles e fazer como você fez , conhecer os lugares citados no livro. Logo começo o próximo. Além desses da Tetralogia , qual você também recomenda ? Obrigada ! Bjo Minelli
Querida,
Sim, ela é genial. Passear por Nápoles depois de ler a tetralogia foi ainda mais especial. Você já leu Frantumaglia?
Bjos,
isa
Eu já tinha muita dificuldade de definir o que eu achava de Nápoles, meio feia, suja, com as pessoas um tanto aborrecidas, gritando no semáforo, quase te atropelando em cima da faixa de pedestre, e ao mesmo tempo com lugares de tanta história, aquela baía maravilhosa, o vulcão imperioso à espreita, a doçura da sfogliatella, e a tradição que me fizeram voltar mais duas vezes. Depois da Ferrante foi que ferrou de vez! Agora que eu quero voltar mesmo, ver mais, observar coisas, me certificar do porquê desse incômodo que instiga. Como se só agora eu soubesse o motivo. Adoraria fazer esse tour com você! E mais uns lugares de outros livros dela! ?
Querida Isabella,
Tenho sempre a impressão de que há tanto para descobrir em Nápoles. Minha vontade é passar uma temporada por lá.
Um beijo