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Ca’Dario, entre lenda e história do palácio amaldiçoado de Veneza

Das tantas lendas e histórias que circulam por Veneza, uma das mais fascinantes é a da Ca’ Dario, um palácio que seria amaldiçoado que fica às margens do Canal Grande, no sestiere (bairro) de Dorsoduro. Alguns eventos dramáticos que aconteceram dentro do edifício fazem acreditar que seus moradores ou proprietários tenham a vida acometida por desgraças ou morram em circustâncias trágicas.

Imagem da Ca’Dario, do catálogo ilustrado do Canal Grande

A origem

A Ca’ Dario (Ca’ = casa) remonta ao final do século XV, mais precisamente ao ano de 1487. Foi construída a pedido de Giovanni Dario, membro de uma família nobre que, naquela época, tinha feito retorno de Constantinopla na condição de embaixador da República de Veneza. Por causa de seu cargo importante e o sucesso nas tratativas com os turcos, Giovanni Dario teve muito sucesso e dinheiro suficiente para investir na construção de um palácio de grande impacto visual.

À época, junto à Ca’ d’Oro, era o palácio que mais ostentava a riqueza e a importância social do proprietário. A fachada, atribuída a Pietro Lombardo, deixava de lado o estilo gótico, muito adotado pelos venezianos no período, para usar detalhes circulares em mármore policromado, elementos renascentistas, integrando-os ao gótico e bizantino.

Os herdeiros e o início da maldição

Algumas fontes dizem que Giovanni Dario repassou o edifício à filha Marietta, como presente de casamento, outras contam que ela simplesmente herdou o palácio depois da morte do pai. A partir daí começa a lenda de que a Ca’ Dario seria um palácio amaldiçoado. O marido de Marietta foi assassinado depois de uma grande perda financeira e ela, desesperada, acabou tirando a própria vida. Pouco tempo depois, o filho do casal morre em uma emboscada na Grécia.

Até o final dos anos 1800, o palácio continuou nas mãos da família Dario pelos herdeiros diretos até ser vendido a um comerciante armênio, que em pouco tempo perdeu tudo e foi obrigado a revender o palácio por um valor irrisório. Em 1896, a Ca’ Dario foi reformada pela nova proprietária, a condessa  Isabelle Gontran de la Baume-Pluvine. Por um período, a condessa  hospedou o poeta francês Henri de Régner, que contraiu uma doença e foi obrigado a se afastar da cidade.

A condessa Baume-Pluvinel, uma das proprietárias

A condessa Baume-Pluvinel, uma das proprietárias

Os eventos trágicos ao longo dos anos

Os eventos trágicos e mortes dramáticas continuaram em período recente. Em 1970, um conde italiano de Turim, Filippo Giordano Delle Lanze, que havia comprado o palácio havia somente dois anos, foi encontrado morto dentro de seu quarto. A autoria do crime foi atribuída a um marinheiro croata que era seu amante. O crime comoveu a cidade.

Um dos últimos proprietários da Ca’ Dario foi Christopher Sebastian Lambert, mais conhecido como Kit Lambert, empresário e produtor do grupo musical The Who. Lambert teve muito sucesso em sua carreira, mas no período em que foi proprietário do palácio amaldiçoado, seu vício em drogas piorou, o que o levou à decadência, com problemas financeiros e de relacionamento com o showbusiness.

Nos anos 1980, um empresário italiano chamado Fabrizio Ferrari comprou o palácio, onde foi viver com a irmã, Nicoletta. A maldição da Ca’ Dario mais uma vez fez suas vítimas: ela morreu em um acidente de carro e ele faliu.

Kit Lambert, (à direita) empresário e produtor do The Who

O último proprietário e a Ca’ Dario hoje

O último proprietário do palácio dito amaldiçoado foi o empresário italiano Raul Gardini. Envolvido em um escândalo de corrupção Gardini se suicidou em Milão, em 1993. Desde então, pela fama de mau agouro e com tantas histórias trágicas envolvendo o palácio, foi sempre difícil encontrar alguém que pudesse bancar as despesas da compra de um imóvel tão importante.

Ninguém conhece a identidade do atual proprietário, que adquiriu o palácio em 2006. O que se sabe é que ele está à venda e a responsável pela negociação é uma agência imobiliária ligada ao grupo Christie’s. O edifício tem quatro andares e 1000 metros quadrados de espaço interno. As paredes são cobertas com tecidos Bevilacqua, os tetos com decorações talhadas na madeira, terraço com vista Canal Grande e um jardim interno com 170 metros quadrados. A Ca’ Dario tem ainda uma das altanas (o típico terraço veneziano) mais amplas e bonitas da cidade.

A verdade sobre a Ca’ Dario

Em 1908, Claude Monet pintou a Ca’Dario

Veneza é uma cidade fascinante onde as lendas e histórias misteriosas ajudam a criar uma atmosfera ainda mais interessante. Assim, uma história como a deste edifício é sempre muito questionável. Em uma entrevista ao jornal italiano La Repubblica (10 abril de 2024), o histórico Pieralvise Zorzi conta que a fama de amaldiçoado do edifício começou a ganhar muita força em um período relativamente recente, quando da morte do empresário envolvido em corrupção, morto suicida em 1993. A atenção da mídia para o caso pode ter incentivado o fortalecimento da lenda relativa ao palácio.

Em seus estudos Zorzi concluiu que Marietta, a filha do primeiro proprietário do palácio, morreu aos 32 anos e seu marido, Vincenzo, não teve uma morte trágica. Ele simplesmente foi expulso do conselho do governo por ser uma pessoa difícil. Um dos três filhos do casal, este sim, morreu assassinado pelos turcos. O tal mercador armênio não teria falido, mas apenas vendido o palácio a um amigo de John Ruskin. Quanto ao poeta amigo da condessa, ele passava seus dias na altana (terraço) do palácio a escrever, observando a maravilhosa paisagem de Veneza.

Para Zorzi, o evento que mancha a imagem do palácio é a morte do conde italiano assassinado pelo amante, nos anos 1970, seguido pela presença do produtor do The Who e do empresário Fabrizio Ferrari, que organizavam festas regadas à cocaína. Quando existe um arco de tempo tão grande, o trabalho do histórico fica ainda mais difícil, encontrar indícios e documentações que comprovem os acontecimentos é sempre uma operação delicada. Assim, as lendas surgem, as histórias são reinterpretadas, e os elementos acabam criando uma nova história.