Os amores e as dores de Peggy Guggenheim

Qual menina, no auge da descoberta de seu corpo e da tomada de consciência de suas formas, não teve dúvidas do amor que sentia por si mesma? Neste momento crítico, a beleza se traduz em sonhos e imagens idealizadas. Peggy Guggenheim, herdeira de uma das famílias mais ricas dos Estados Unidos, driblou desde cedo com a arte, a sua falta de atributos. O espelho que tinha ao lado de sua cama no apartamento da família em Nova Iorque refletia uma imagem bem diferente que a do quadro pendurado na parede.

Seu pai, Benjamin Guggenheim, morto heroicamente no naufrágio do Titanic e por quem Peggy nutria um forte amor, havia encomendado um retrato da família ao pintor alemão Franz Von Lenbach. Se no retrato a irmã Benita corresponde fielmente à realidade, Peggy sofre uma transformação. Os cabelos castanhos ganham reflexos avermelhados e o nariz, que alguns anos depois conquista nova forma na tentativa frustrada de cirurgia estética, é afinado em proporções mais aceitáveis. O pincel do artista é gentil com Peggy assim como os anos sucessivos não lhe serão.
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1950, Peggy e os famosos brincos assinados por Alexander Calder

Peggy encontra o amor em uma roda de intelectuais que começa a frequentar em Nova Iorque. O escritor Laurence Vail, filho de americanos, cresceu em Paris, no meio da efervescência cultural e era conhecido como “o rei de la bohème”. Do seu lado, Peggy se catapultou em um mundo libertino, selvagem e vibrante. Em 1921, se muda para Paris. Os americanos expatriados amam frequentar os cafés e brasseries da cidade, o movimento dadaísta triunfa com Man Ray, André Breton, Tristan Tzara, Brancusi. E Peggy mergulha em uma vida de excentricidades e relações perigosas, mas enriquecedoras do ponto de vista humano, cultural e criativo.

Em uma vida regada a álcool, escândalos, traições e violência, Peggy e Laurence tiveram dois filhos, Sindbad e Pegeen. Conseguiram manter-se unidos por alguns anos, entre agressões, uma prisão de Vail, viagens pela Europa e verões passados no sul da França. O desgaste do casamento é acentuado com a previsão de uma vidente de Montmartre que diz que Peggy encontraria em breve um novo amor, provocando a ira de Vail e o sucessivo divórcio.

1962, Peggy é nomeada cidadã honorária de Veneza

1962, Peggy é nomeada cidadã honorária de Veneza

Corre o ano de 1928 quando a profecia se cumpre. Peggy torna-se amante do intelectual inglês John Holmes, com quem passa as tardes fazendo amor nos campos de lavanda da Provença. O casal muda-se para Inglaterra sem se preocupar com um modo de ganhar a vida, já que a fortuna de Peggy sustenta seus vícios e viagens. O círculo de amigos artistas, intelectuais, escritores, músicos e dançarinos cresce e Peggy apoia financeiramente algumas produções.

Em 1934 Holmes morre aos 37 anos após uma cirurgia deixando Peggy transtornada. Com quase 40 anos, dois filhos e uma sensação de vazio, a ideia do suicídio lhe ronda, mas não a convence. Incentivada pela convivência na roda dos intelectuais e apoiada pelo tio Salomon Guggenheim, Peggy decide dar uma guinada em sua vida, abrindo finalmente a Guggenheim Jeune, sua primeira galeria de arte em Londres com uma mostra de Jean Cocteau, e  supervisão de Marcel Duchamp.

Nos anos sucessivos à abertura da galeria, Peggy carrega para sua vida privada alguns artistas como Samuel Beckett, Yves Tanguy e até o próprio Duchamp. A menina priva de atributos contava com um currículo amoroso vasto e conquistas pessoais e profissionais importantes. A ideia de abrir um museu de arte em Londres foi minada pela dificuldade de encontrar apoiadores e pela invasão da Europa pelos nazistas. Peggy é obrigada a retornar a Nova Iorque, onde poucos meses depois casa-se com o genial pintor e escultor Max Ernst.

Sala de jantar do Palazzo Venier

Sala de jantar do Palazzo Venier

A relação dos dois era diferente de todas as outras que Peggy tivera. O via como uma criança abandonada. Ele por sua vez costumava dizer que ela era uma mulher perdida. O casamento era animado por festas, álcool excentricidades no plano sexual e cenas de ciúmes.  Pouco tempo depois de abrir sua galeria em Nova Iorque, o casamento termina.

Aos 50 anos Peggy decide voltar ao Velho Continente e é ali que encontrará seu último e grande amor, Veneza, a cidade dos doges. Em junho de 1948 expõe sua coleção na Bienal. Era a primeira vez que a Itália recebia uma mostra de arte moderna e via obras de artistas como Jackson Pollock e Mark Rothko. Os venezianos ficaram enlouquecidos com a excêntrica americana e Peggy, apaixonada por Veneza, compra o Palazzo Venier dei Leoni, no Canal Grande.

A burguesia veneziana se escandaliza com a figura de Peggy. As críticas e a hostilidade são um combustível para Miss Guggenheim. Nos dias de primavera ela se deita completamente nua em seu terraço para pegar sol. Somente anos depois de sua chegada em Veneza, Peggy começa a ser convidada para as festas e eventos sociais. Em 1951, conhece um jovem italiano, pouco mais velho que seu filho. Raoul Gregorich é musculoso, esportivo e tem paixão por carros de corrida. Peggy se sente amada, segura, feliz, mas este será definitivamente seu último amor. Raoul morre em um acidente automobilístico em um dos carros presenteados por Peggy. Poucos anos depois, a filha Pegeen morre aos 41 anos depois de uma overdose de barbitúricos e álcool.

Em sua casa em Veneza, onde hoje funciona seu museu

Em sua casa em Veneza, onde hoje funciona seu museu

A tristeza nos olhos daquela menina, invisível no quadro de Franz Von Lenbach, é devastadora. Os anos sucessivos foram para Peggy de recolhimento. Palazzo Venier era visitado por poucos amigos e por gente interessada em ver sua coleção. A nudez das tardes de sol na varanda foi substituída por um casaco de pele que Peggy não tirava nunca e seus icônicos óculos desenhados pelo amigo estilista Ken Scott. Em 23 de dezembro de 1979, Peggy morre na sua cama e suas cinzas são enterradas nos jardins do palácio, ao lado do túmulo de seus amados cãezinhos. A última dogaressa finalmente pôde repousar.

Para ler sobre o museu Peggy Guggenheim, clique aqui

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Esta matéria foi publicada originalmente na segunda edição da Cause Magazine, publicação independente produzida por criativos de diversas áreas com a qual colaboro. Para saber mais ou comprar clique aqui.

As fotos foram cedidas pelo Museu Guggenheim de Veneza

7 replies
  1. Paola
    Paola says:

    Isa, fico me perguntando quando as escolas vão começar a ensinar inteligência emocional desde cedo. Sei que é vago falar em inteligência emocional, mas não sou pedagoga e não me cabe. Também não pretendo ter filhos, se fosse o contrário poderia ser bem envolvida com o ensino construtivista. É que passamos a vida batendo cabeça e nos auto-sabotando, e a construção pilar disso se dá no início da vida. Só não fico triste pela Peggy por motivos egoístas, mas com toda sua sensibilidade, fortuna e ousadia, merecia ter tido uma vida mais feliz.

    • Isa Discacciati
      Isa Discacciati says:

      Oi,Paola,
      Acho que a Peggy viveu em outro tempo, um momento muito vivaz de novas perspectivas no campo da arte e da liberdade e ela mergulhou de cabeça neste momento, vivendo intensamente. Foi uma mulher de grande coragem e grandes feitos. A vida dela foi dramatica, mas acredito que tenha vivido momentos bem felizes.
      Um abraço

      isa

  2. Isabella Moraes
    Isabella Moraes says:

    Uma mulher que validou a própria existência de superlativos, para o amor, para a dor e para a arte. Que vida sofrida e interessante! Deu vontade de conhecer mais detalhes.

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