Por que os navios de cruzeiro são uma ameaça para Veneza?
Muitas pessoas relatam o estupor que sentem ao adentrar o Canal da Giudecca e admirar Veneza do alto dos 70 metros de um navio. Mas quem está do outro lado, vivencia um outro tipo de estupor, o de ver um gigante na laguna que parece que vai engolir a cidade. É necessário que façamos algumas perguntas e busquemos informações para entender porque os navios de cruzeiro são uma ameaça para Veneza.
O assunto divide a cidade. Alguns defendem a presença dos grandes navios argumentando naturalmente os benefícios econômicos com a geração de empregos e incremento do turismo. A outra parte reflete sobre as ameaças ao ambiente e a massificação do turismo. Para entender esta questão, o Venezia Autentica, projeto que tem como missão desenvolver o turismo responsável na cidade, fez uma grande pesquisa sobre os fatos relativos aos grandes navios de cruzeiro. Os números apurados por eles impressionam. As informações abaixo foram retiradas do artigo original, apurado e escrito pela equipe do Venezia Autentica, com a devida autorização.
As fotos em preto e branco são do famoso fotógrafo Gianni Berengo Gardin, que fez uma série sobre os grandes navios em Veneza.
Os números de Veneza
- A superfície de Veneza é de aproximadamente 8km quadrados, cerca o dobro do Central Park, em Nova Iorque.
- O edifício mais alto de Veneza é o Campanário de São Marco, que mede 99m.
- A maior parte dos edifícios de Veneza tem menos de 20 metros de altura
- A profundidade média da lagoa de Veneza é de 1,2m.
- O número de habitantes da cidade é menor que 55 mil
Os números dos navios
- O primeiro navio de cruzeiro construído em 1970 media 188 metros de comprimento, 24 metros de largura, pesava 18 toneladas e capacidade para 1100 pessoas
- O navio Harmony of the Seas, construído em 2016, mede 362,15 metros de comprimeiro, 66 metros de largura, 70 metros de altura, pesa 226.963 toneladas e capacidade para 9000 pessoas. A tonelagem é 500% maior que aquela do Titanic
- Dos 47 novos navios que serão construídos até 2021, 38 terão mais de 100.000 toneladas
Atualmente, um decreto de 2013 proíbe a passagem de navios com mais de 96.000 toneladas na bacia de São Marcos. Para imaginar quanto seja grande um navio deste porte, basta pensar que o MSC Magnifica está somente um pouco abaixo deste número e mede 294 metros de comprimento e 32 metros de largura, e pode hospedar até 4600 pessoas.
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A questão da poluição
Toda a superfície de Veneza é inacessível aos carros, o que a torna a maior cidade de pedestres do mundo. Veneza é a líder italiana em mobilidade ecológica, já que há uma percentagem muito maior de pessoas que utilizam o transporte público em comparação ao resto da Itália. Mas infelizmente a poluição do ar não é tão baixa como deveria ser, pois os barcos de transporte público e os barcos de turismo podem utilizar combustível com alta porcentagem de enxofre e não são obrigados a usar filtros.
A agência regional de proteção e proteção ambiental demonstrou que o tráfego de navios de cruzeiro em Veneza é o principal responsável pela poluição atmosférica. Um fato preocupante foi apontado pelo Instituto de Câncer do Vêneto: em Veneza e em Mestre há um excesso estatisticamente significativo de câncer de pulmão em relação ao resto da Itália.
O combustível do navio em movimento pode conter até 3,5% de enxofre, é 3500 vezes mais enxofre do que o permitido no combustível de veículos terrestres. Mas não para por aí. Quando os navios estão ancorados, eles também estão produzindo enxofre, porque um navio tem de manter seu motor funcionando para produzir energia elétrica para poder oferecer serviços e comodidades a bordo. Um navio ancorado em Veneza mantém o motor funcionando 24h por dia.
Os perigos para a cidade
- O deslocamento em navios de cruzeiro é aproximadamente 50% de sua tonelagem bruta: um navio de 100.000 toneladas irá mover 50 milhões de litros de água. Mesmo que seja relativamente lento, o movimento de uma quantidade tão grande de água corrói a base dos palácios e das ruas de Veneza.
- A poluição causada pelo combustível utilizado pelos navios de cruzeiro prejudica severamente o ambiente e a saúde das pessoas, mas também danifica as obras de arte e os palácios da cidade.
- A escavação dos canais para permitir que os navios passem pela lagoa aumenta a quantidade de água que entra e sai durante as marés. O efeito direto em Veneza é o aumento do número e a intensidade do fenômeno da maré alta, que inunda parcialmente a cidade.
- Todo navio de cruzeiro que entra na lagoa de Veneza e é abordado por dois capitães do porto e é manobrado por todo o trajeto, até que seja encaixado com segurança no porto. O navio é seguido por dois rebocadores que podem intervir em caso de emergência. Essas regras deram grande segurança à cidade ao longo dos anos, evitando até agora acidentes graves.
- Os riscos são calculados e tudo é feito para minimizar, reduzir e impedir acidentes. Mas eles acontecem. Por erro mecânico, humano, terrorismo, ou qualquer outra razão que pode virar tragédia.
- Nos últimos anos, entre 500 e 600 navios de cruzeiro atracaram anualmente em Veneza. Isso significa que os cruzeiros atravessam a Bacia de São Marcos entre 1.000 e 1.200 vezes por ano, apenas em frente ao Palazzo Ducale de um lado e San Giorgio do outro lado. Em 20 anos, grandes navios terão passado 20 a 24.000 vezes através do coração de Veneza. Um, apenas um, um único acidente na bacia poderia significar uma tragédia em Veneza.
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O impacto econômico
- O Terminal de Navios de Cruzeiro de Veneza emprega cerca de 5.000 trabalhadores localmente, o que representa mais de 4% dos trabalhadores de Veneza e um total de 7 a 8 mil trabalhadores em toda a Itália. O impacto econômico do porto representa 3-4% do PIB do município de Veneza.
- Veneza é um porto de origem de vários navios, o que quer dizer que as excursões começam a partir da cidade. Isso significa que muitas pessoas pernotam em Veneza antes de começar a viagem, trazendo benefícios econômicos para as estruturas receptivas e restaurantes. Em 2015, o porto de Veneza acolheu cerca de 1,6 milhão de passageiros
- Por outro lado, um grande número de lojas de souvenirs e restaurantes de baixa qualidade abriram, para atender este público. Esse tipo de negócio contribuiu para o desaparecimento de muitas lojas e atividades locais, artesãos e tradições autênticas.
As intervenções do governo
Desde 2013, um decreto chamado Clini-Passera proíbe a passagem dos navios de mais de 40.000 toneladas pela bacia de São Marcos. No entanto, para que esse ponto seja respeitado, o decreto exige a presença de rotas alternativas para estes navios. Enquanto a cidade não fornecer alternativas, esse limite é automaticamente aumentado para 96.000 toneladas. Antes de 2013, o limite superior era 130.000 toneladas.
A partir de outubro de 2016, as únicas restrições aos navios de cruzeiro que atravessam a bacia de São Marcos são o uso de combustível com menos de 1,5% de enxofre (1500 vezes superior à porcentagem permitida em terra) e uma tonelagem bruta abaixo de 96 mil toneladas.
Enquanto para Veneza é um risco, para as companhias de cruzeiro o limite de 96 mil toneladas não é interessante, já que a maioria dos navios novos que estão sendo construídos chegam a 100 mil toneladas. Quando vendem os pacotes turísticos, a passagem por Veneza é o grande atrativo que eles oferecem e o argumento mais forte para fecharem a viagem.
ProcurandPossíveis soluções e propostas
São três as propostas estudadas pelo governo italiano para solucionar os problemas dos grandes navios em Veneza. Dois deles, chamados Projeto Contorta e Projeto Trezze, concentram-se na escavação de canais existentes na lagoa veneziana, o que é questionado do ponto de vista ambiental.
Outro projeto, chamado Venis Cruise Project, não é bem aceito pelas companhias de cruzeiro pois concentra-se na construção de um novo terminal de chegada e partida dos navios, na entrada do Lido, que liga o Mar Adriático à lagoa. Isso impediria que os turistas vissem Veneza de cima do navio.
Uma alternativa sugerida seria a utilização do já existente canal do petróleo, na cidade de Marghera. Este projeto não exigiria intervenção na lagoa. O Porto de Marghera poderia oferecer também a energia necessária aos navios para que eles não precisassem deixar os motores ligados enquanto ancorados.
Contra X a favor
É compreensível que a chegada e partida dos grandes cruzeiros em Veneza trazem receita pra cidade e têm peso fundamental na geração de empregos em um país em crise. Em contrapartida, a ameaça ao meio ambiente, ao patrimônio histórico, artístico, cultural e humano é um grande ponto de discussão.
Existem dois grupos com seus próprios motivos para defender ou criticar a presença dos navios na cidade. Eu me junto ao coro do Venezia Autentica. Para eles, é importante respeitar e compreender a importância desse negócio e os empregos que ele gera, mas a situação tem de mudar. Não dá pra aceitar os riscos que os cruzeiros trazem pra cidade, a poluição, a deterioração dos alicerces e seus palácios, a desvalorização do artesanato local e o improvável, mas não impossível risco de colisão.
Mudanças possíveis e absolutamente necessárias
- A obrigação do uso de filtros nos navios
- Perto das cidades, o combustível permitido nos navios deve respeitar os mesmos parâmetros que o permitido em terra
- Os navios ancorados devem desligar os motores e receber energia elétrica diretamente do porto
- Os navios não devem passar na frente de São Marcos. Entretenimento e lucro não devem vencer a segurança
- Nenhum canal novo deve ser cavado ou ampliado. A lagoa de Veneza é fragil e deve ser preservada
Minha ideia e objetivo com o blog é oferecer informações de caráter prático, histórico e cultural sobre Veneza. Pra mim, receber turistas brasileiros, meus conterrâneos e apresentar a cidade, além de uma atividade, é um grande prazer. Eu escolhi ser gentil com Veneza, que me doa tanto, e por isso, me preocupo em problematizar e mostrar as dificuldades e fragilidade da cidade, com o intuito de fazer a minha parte para preservá-la. Agradeço a Valeria e Sebastian, do Venezia Autentica por gentilmente permitir que eu adaptasse o texto e o publicasse. Eles oferecem um ótimo conteúdo sobre a cidade em inglês. Passem por lá para conferir.
Vou seguir o Veneza Autentica e claro, compartilhar esse post aqui! Gente, eu fui em uma época q nem era a alta temporada ainda no ano passado e a cidade era um formigueiro! Impossível continuar do jeito que está e a cidade resistir para as próximas gerações.
Fer,
Valeu! Eu faço questão de falar sobre isso e propagar a ideia do turismo responsável em Veneza. Como está não pode ficar. Obrigada por compartilhar. O Veneza Autentica é um projeto muito legal.
Bjos,
isa
Desculpe-me Isa. Sou meio “sono” mesmo. Somente agora percebi que posso obter todas as informações que preciso sobre Veneza. Estou amando seu site, pois tenho muitos motivos para admirar essa cidade.
Minha avó paterna veio para o Brasil desta região: Vêneto!
Estive uma vez em Veneza, mas só por um dia. Espero que na próxima vez, possa ficar por vários dias pra conhecer melhor toda essa região.
Mas, por enquanto, ficarei no seu site lendo as informações e sonhando… Quem sabe né?
Agradecida ❤️
Olá,Zilda,
Fico contente que esteja aproveitando as informações e espero que em breve você possa voltar a Veneza com mais calma.
Um abraço,
Isa
Gostei da forma isenta e esclarecida como escreveu o artigo. Sou engenheiro hidraulico ha 40 anos e estudei Veneza. Agora sou consulter de processos de conformidade e sustentabilidade. Os novos cruzeiros sao a Gas Natural, totalmente compativeis com os limites mas severos.
Olá,Luiz,
Que bom ter seu comentário por aqui.
Obrigada!
Estive em Veneza pela primeira vez na semana passada. Mesmo sem saber de todas essas questões, senti que a cidade, tão linda, tão única, está ameaçada. É de fato assustador ver navios tão grandes chegando avassaladores tão próximos de outros barcos e da cidade; ver a cidade tão cheia de turistas; imóveis abandonados por moradores que deixaram a ilha; turistas que jogam lixo nos canais. De fato, Veneza precisa ser salva! Aquela cidade incrível merece!
Oi,Ana,
Que bom que você teve esta sensibilidade. Sempre que puder, ajude-nos a espalhar esta voz.
Um abraço,
isa