O último battiloro de Veneza
Em um sopro, eu encontrei a morte e a vida em uma pequena bodega em Veneza. Há 89 anos, a família Berta dá continuidade a um trabalho que nasceu nos remotos tempos em que a República Vêneta construía seu império por meio das trocas comerciais com o Oriente. O ouro que chegava a Veneza era transformado pelos chamados “battiloro” em finíssimas folhas, utilizadas na decoração de objetos e obras de arte que glorificavam a riqueza da igreja e a nobreza do tempo dos doges. A profissão de “battiloro” teve seu auge em Veneza nos anos 1700, quando este tipo de artesão na cidade chegava ao incrível número de 300 homens.
Nos tempos áureos da República, casas, igrejas, palácios, estátuas eram adornados com as folhas de ouro provenientes dos diversos laboratórios artesanais da cidade. Os vidros da vizinha Murano eram enriquecidos com o toque dourado e reluzente. Construções antigas, santos, oratórios, urnas eram restaurados com a matéria prima reduzida às finas lâminas do “battiloro”. Para se ter uma ideia do prestígio deste ofício, aos homens que o desenvolviam era permitido fazer a corte e casar-se com as moças de família nobre.
A profissão de “battiloro” foi quase completamente extinta no final dos anos 1800, depois da crise do século que sucedeu-se à queda da República de Veneza. “No final dos anos 1800, não existiam mais artesãos “battiloro” em toda Veneza, os patrícios não queriam e não podiam mais restaurar estátuas, igrejas e palácios, de onde provinha a maior parte do trabalho do “battiloro”, explica Marino Menegazzo, o último “battiloro” de Veneza.
Posicionado em frente a um balcão de mármore, Marino se recorda do caminho que percorreu para tornar-se o último “battiloro” de Veneza: “Fui vendedor de livros, fiz alguns concursos públicos e passei em todos, mas entendi que não era um trabalho para mim, até que meu sogro, à época submerso de encomendas, me pediu para dar uma ajuda por aqui; os pedidos foram aumentando e eu fiquei. Me apaixonei tanto por este ofício que acabei por superar o meu mestre, e ele sabia disso”, conta orgulhoso.
Marino herdou do sogro a difícil missão de equilibrar força e delicadeza. A mesma delicadeza que suas filhas, as gêmeas Eleonora e Sara, junto a um pequeno grupo de mulheres, desenvolvem em um laboratório com iluminação suave e um silêncio desconcertante. As irmãs levam adiante uma etapa fundamental do trabalho que seu avô Mario Berta ensinou ao pai delas.
A transformação da matéria prima em folhas finíssimas tem início com o processo de fusão, que purifica o ouro, sucessivamente solidificado em forma de barra. Em um segundo momento, o ouro é dividido em lâminas para que finalmente entre em ação o “battiloro”.
Para se chegar a um bloquinho com 25 folhas de ouro cada, é necessário que Marino bata por 1 hora e meia sem cessar com martelos que pesam no mínimo 8 kg até que as folhas de ouro atinjam a espessura final desejada. “Bater o ouro à mão faz com que os átomos da matéria permaneçam inalterados e isto garante uma qualidade superior, o que só nós fazemos em toda a Europa e talvez no mundo inteiro”. Marino explica que a produção das finíssimas folhas de ouro é exclusividade da sua antiga bodega em Veneza, já que todos os outros produtores realizam o trabalho de forma industrial.
Sara faz coro com o pai: “Sinto como se não existisse ninguém como nós, é como se fossemos um exemplar único”. Ela, que completou os estudos universitários e trabalhou na administração de algumas pequenas empresas do Vêneto, resolveu investir na atividade da família. Com a irmã Eleonora e a mãe Sabrina, é a responsável por equilibrar a força do pai com a delicadeza das mulheres que trabalham na Berta Battiloro.
A sincronia entre respiração e gestos é que rege o trabalho. As folhas de ouro são finíssimas e é necessário somente um sopro para que elas vibrem. Um sopro mais ou menos forte basta para que elas se se assentem ou se desfaçam. As mulheres do “battiloro” trabalham com pinças e precisão. Cada bloquinho é feito de 25 folhas de ouro alternadas com um papel antiaderente especial. Para encaixar uma folha de outro entre o papel, elas respiram e sopram delicadamente. O papel, que tem um tratamento especial, deve estar livre de resíduos e fragmentos. O processo é feito com patas de lebres que distribuem o talco e as cinzas para evitar que o papel grude nas folhas de ouro. As patas de lebre são fundamentais neste processo porque não perdem pelo.
A preciosidade da matéria prima não permite perdas. No pavimento do laboratório, grades de madeira recolhem os fragmentos dispersos no ar e recompostos com a ajuda de um aspirador de pó. Estes reluzentes e preciosos pedaços de “papel” irão retornar ao processo desde o início para voltarem à mesa das artesãs.
Do pequeno laboratório secular de Marino Menegazzo, as finíssimas folhas de ouro seguem para bodegas de outros artesãos onde serão aplicadas em objetos decorativos como mosaicos, esculturas e vidros. É dali que saiu o ouro que adorna o suntuoso anjo do campanário da Praça São Marcos, em Veneza. As folhas de ouro são utilizadas ainda na indústria cosmética e na decoração de pratos de chefs de restaurantes estrelados.
A casa onde funciona o Berta Battiloro é impregnada de história. Ali viveu seus últimos anos Ticiano Vecellio, um dos maiores representantes da escola veneziana no Renascimento. A família Berta manteve a estrutura original da casa, assim como vem mantendo a tradição do ofício. Mas enquanto Sara e Eleonora entre sopros e pinças equilibram a delicadeza, Marino enfrenta dificuldades em ampliar a força. “É muito difícil encontrar quem queira aprender o ofício, não existe uma escola que forme um “battiloro”, não é um trabalho, é uma arte. É necessário senti-la para entrar na ótica do artesão”, defende Marino.
Além de dificuldade em encontrar um sucessor, o último “battiloro” de Veneza sente a concorrência. As fábricas de folhas de ouro industriais na Europa e no exterior recebem numerosas encomendas pois produzindo em grande escala conseguem ter preços competitivos. A baixa qualidade porém percebe-se na quantidade de material que vem descartado, o que não acontece utilizando-se as folhas produzidas de modo artesanal.
Tecnologia e o sopro de vida
Assim como o sopro pode arruinar o trabalho duro do “battiloro”, a morte do ofício pode chegar com a ação devastadora da tecnologia, que acelera processos e otimiza a produção. No caso do último “battiloro” de Veneza, o sopro de vida contou com a ajuda de uma start up criada pelos arquitetos Eleonora Odorizzi e Andrea Miserocchi. O portal Italian Stories é o primeiro marketplace de turismo cultural do artesanato italiano e funciona como uma comunidade virtual que coloca em contato turistas e artesãos de todo o país.
A equipe do Italian Stories foi em busca de bodegas, artesãos e antigos ofícios em toda Itália e encontraram um novo modo de contar histórias. De um lado, a iniciativa permite ao artesão de mostrar o seu trabalho, com a riqueza dos detalhes e com a paixão passada de geração a geração. Da outra parte, consegue emocionar o turista fora do padrão, aquele que prioriza a experiência.
A tecnologia que supera a produção artesanal não é a mesma que conecta indivíduos interessados em descobrir o território em bodegas desconhecidas do grande público. “Existem tantas possibilidades nas quais a tecnologia pode ajudar a produção artesanal, mas para nós esta tinha um sentido diferente, não ligado ao objeto, mas sim ao compartilhamento de habilidades e competências”, defende Eleonora.
O Italian Stories encontra fermento no constante interesse por uma nova forma de fazer turismo, o slow travel, prática que privilegia a experiência emocional e uma viagem sustentável. A valorização do artesão local se dá com o interesse do turista em conhecer a história do lugar pelo seu ofício e os bens produzidos, duas coisas que caminham juntas. Na antiga bodega de Marino, Eleonora e Sara sabem que um pouco da história de Veneza, de seus monumentos, igrejas e palácios saiu do laboratório onde inclinadas sobre uma mesa, elas sopram as folhas do último “battiloro”.
Contatos:
Berta Battiloro: http://www.berta-battiloro.com/
Italian Stories: http://www.italianstories.it/
Fotos: Evelyn Leveghi
Esta matéria foi publicada originalmente na segunda edição da Cause Magazine, publicação independente produzida por criativos de diversas áreas com a qual colaboro. Para saber mais ou comprar clique aqui.
Matéria de Ivaaaa!
Muito linda essa tradição… Coisas que só a Italia faz por você!
Obrigada por nos contar sobre isso… Bjo
ÔOOO Mada,
Brodona. Valeu. É lindo mesmo. Fiquei encantada ao ver o trabalho do Sr.Marino e das filhas. Espero que ele encontre algum substituto entusiasmado como ele.
Bjos
Que post surpreendente Isa, que espetáculo!
Só tenho a agradecer por compartilhar conosco estas delicadas belezas. Depois desta envolvente leitura, não me restam palavras para aqui escrever, pois ainda estou completamente envolvida pela magia deste delicado trabalho.
Complimenti cara. Bacio, ciao Isa!
Querida Maria Glória,
Suas palavras são um grande incentivo. Acho que temos mesmo que contar essas histórias tão lindas,vero?
Um bjo e grazie mille.
Isa
Vero cara, e eu fico imensamente agradecida pela sua partilha!
Bacio.
Eu á havia respondido ahahaha… coisicas da idade… podes me me entender, né amore mio?
Claro,querida.
Bjos
Claro que temos, como perder uma oportunidade desta, ainda mais em outro continente?
Partilhei esta postagem com um prima arquiteta, que gosta de belezas, como nós, amore.
Obrigada, minha querida,
Bjos
Isa, boa tarde.
Vou à Itália pela segunda vez este ano. Ano passado estive Roma, Firenze e Lucca. Este ano faço Roma, Veneza, e Milano, mas antes penso em vistar Pisa, Siena e Verona, esta última perto de Veneza. Pergunto, um dia é mesmo suficiente para visitar as cidades de Pisa, Siena e Verona? Estou gostando muito de ler seus commenti.
Obrigado
João Leite.
Oi,João,
Tudo bem? Bom, se você irá reservar um dia para cada cidade (Pisa, Siena e Verona), sim, é suficiente. As três no mesmo dia nem pensar. Rs.
Dê uma olhada no blog http://www.vivatoscana.com.br para informações sobre a Toscana.
Um abraço,
Isa
Nossa! e como faço para comprar as folhas de ouro?
Olá,
Entre em contato diretamente com o Berta Battiloro.
Att.
isa
Isa
Esse artigo é encantador. Vejo como uma alternativa para manter viva a arte artesã, tão importante para sustentabilidade dessa profissão. Uma possibilidade de dialogar com a criatividade e a inovação de um modo não mecânico.
Mariluci,
Muito obrigada. Tive este grande privilégio de visitar esta ateliê. Muita história e tradição.
Um abraço,
Isa